Amélia

            “Que te amo cada vez mais. Que és meu tudo, o que me conforta”.


Is there anybody going to listem to my story? All about the girl who came to stay… Shes the kind of girl you want so much, it make you sorry. Still you don’t regret a single day. Oh, girl… Girl!

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Por vezes não imaginamos a mudança de nossas rotinas. Durante quatorze anos, desenhara o futuro em uma linha reta, visando escola, faculdade lucrativa e uma boa vida com filhos e família. Ora, o que achava eu, que poderia igualar-me ao comum de todos? Não. Por mais que a vida me ajudara a crescer, o reflexo no espelho mostrava-me quem eu poderia ser. Meu nome poderia definir-me – Mia, como a Thermophiles do livro – mas confiava ainda mais em minha personalidade.
O começo do ano. Novas amizades me vinham como bênçãos, como se já as tivesse conhecido ha tanto tempo. Tornaram-se logo os melhores, os culpados por meus caminhos tortos, porém aos que mais devo agradecimento. O sonho de medicina veterinária aos poucos fora se perdendo, dando lugar ao que os outros achavam impossível. A dança. Não conhecia a capacidade que os pés tinham, deslizavam suaves ou rápidos, o corpo comparado a uma mola. A caneta que traçara o meu destino aos poucos perdia a cor. Era a hora de eu começar a desenha-lo.
A descoberta da cultura, de como a mesma podia me encantar. O brilho e magia das paginas de livros. E justo a mim, que tinha a estrutura familiar baixa, e – reconheço eu – a ignorância daqueles que me rodeavam nunca me daria à oportunidade de conhecer o mundo ao qual hoje faço parte. Porém, o meu valor fora preservado. A simplicidade. A humildade. O que eram as pessoas sem ela?
Não tinha irmãos, zelava por meus mimos, porém sabia como controla-los. Não tínhamos dinheiro, mas o pouco que minha pensão me proporcionava, conseguia comprar a passagem para o outro lado da ponte, e mesmo dentro de casa, conseguia viajar para onde meus olhos me guiassem. Meus pais eram separados. Minha mãe ficava o dia todo fora, meu pai somente aos finais de semana, isto tão raramente que a saudade se camuflava em meio à raiva de seu esquecimento. Não tinha um computador, apesar de ser vidrada em internet.
Não era o que importava.
O que mais Amélia Teodoro teria a agradecer?


20/Outubro/2006 - sexta-feira.

O ruim de ter uma tia solteirona é que geralmente ela mora longe de ti, não tem tempo de arrumar a bagunça da casa, nunca tem comida no armário e quando você está na casa dela, ela sempre está trabalhando para o próprio sustento e realização profissional. O bom de ter uma tia solteirona é poder rir de tudo isso, reverter estes fatos bizarros e se divertir com tais coisas. Quando viajava para a casa da tia Rosangela, na cidade vizinha a minha, me livrara do ar rotineiro da cidade de Santana – interior de São Paulo. Ela sempre chegava tarde da noite, mas quando com uma companhia, era diferente. Mudávamos os móveis de lugar, “construíamos” meu quarto em cômodos diferenciados (desde cozinha até banheiro), cozinhávamos ou comprávamos besteiras. E quando de dia, a casa era minha. O som alto, as plumas dela enroladas no pescoço. Nada mais era preciso.
Quando cheguei lá, numa sexta-feira, ela ainda estava no serviço. Deixara apenas um bilhete, com algum dinheiro em cima, dizendo que demoraria um pouco a chegar e para eu me virar com a comida. Ora, minha diversão então começaria mais cedo. Larguei as malas em qualquer canto da sala, trocando o uniforme da escola por um vestido largo, um chinelo. Ir ao mercado e comprar doce. Era só não pensar na distancia que levaria.
No caminho, um sorvete para descontrair. Aos poucos a lua cobria o sol, escurecendo mais um dia. Precisava ir rápido, ali não era minha cidade, eu ainda tinha meus receios quanto a lugares desconhecidos e pessoas desconhecidas. Quando cheguei a meu rumo, fiz questão de encher a cesta – chocolate, refrigerante, leite condensado, bolacha recheada – o dinheiro era suficiente.
No caminho de volta que foi o problema.
Não era covardia, mas me manter longe de confusões fazia parte do plano de não sair machucada por besteiras. Foi o motivo pelo qual parei e esperei a briga a minha frente acabar, e quando acontecesse, voltaria para casa. Não acabaria tão cedo.
Eram dois homens, um com rosto de menino estava sendo prensado pelo outro na parede. A voz do homem negro estava alterada, porém não conseguia distinguir as palavras, não quando o que me chamava atenção era uma faca. Engoli em seco. O que segurava a lâmina parecia convencido a enfia-la no outro, e o que eu poderia fazer a não ser esperar?
 - Porra! Eu vou pagar! – o grito do garoto fora mais audível, me fizera estremecer. – Eu tenho o dinheiro, só não tenho o tempo por que você está com essa droga no meu pescoço!
 - Abaixa a voz, moleque. Eu não tenho que te dar tempo, o seu já acabou... – parecia calmo demais, mas o pulso estava firme.
 - Um mês. Nada mais do que isso! Poxa sabe onde eu moro, onde eu estudo, vou fugir pra onde?
O homem então deu um meio sorriso, desses que se sabe que não vem boa coisa. Permaneci parada perto a parede da esquina. Esconderia-me se ele olhasse para trás, mas não conseguia me mover naquele momento. Ele escorregou a faca de seu pescoço assim, passando por seu peito e chegando até o botão da calça. Desceu apenas um pouco mais. Aí sim não quis olhar. Apenas me virei para a parede, ouvindo o grito dele mais à frente.
Durante um tempo, fiquei encostada ali, quase largando a sacola de compras na rua, as mãos e pernas trêmulas. Quando rapidamente olhei para o lado, vi o homem passar na rua diferente a mim. Guardara a faca.
Não havia outro caminho para ir pra casa. Teria de passar por alguém que provavelmente estaria ensangüentado na rua, sabe-se lá se não morto. Já estava noite. Esperei parada, e nada de coragem. Ninguém passava na rua para me acompanhar.
Respirei fundo. Atravessei a rua e andei, lentamente sem ousar olhar para o lado. Os gemidos baixinhos vinham acompanhados de choros na outra calçada. Do que adiantaria me fazer de surda? Aquilo nunca sairia da minha cabeça. Mas eu com quatorze anos só me meteria em confusão se tentasse fazer alguma coisa para ajudar quem eu não conhecia. Ora, se tivesse adiantado...
 - Hey! – a voz estava um pouco rouca. – Tem um celular? Qualquer coisa...
Engoli seco, olhando rapidamente para o lado. A jeans clara estava toda ensangüentada assim como sua mão que segurava o ferimento perto da virilha. Apenas neguei com a cabeça, tentando voltar a caminhar.
 - Pode chamar alguém? Qualquer pessoa, eu só... – calou-se.
E o que eu era para deixar um garoto sangrando no meio da rua? Senti meus pés travarem novamente. Se fosse um amigo meu ou até mesmo eu ali, estirada na calçada e ninguém me ajudasse... Sim, eu conhecia e confiava em meu caráter e não no dele, mas por não o conhecer, não poderia deixa-lo ali pedindo ajuda ao vento, não quando havia hipótese de ele ser uma boa pessoa. Não era Deus, não costumava julgar o caráter das pessoas. Fechei brevemente os olhos, largando as compras na calçada e correndo então.
Havia algumas casas nas próximas ruas. Era chamar alguém, levar até lá e ir embora. Nada mais. Bati palma numa das casas, a luz acesa ultrapassava os vidros e a cortina na janela, um carro na garagem. Um tempo depois a moça saiu, as pantufas escondendo os pés branquelos como sua pele.
 - Tem um garoto na rua de trás. Ele precisa de um médico, está sangrando... – disse com a voz falha, mordendo o lábio inferior – Tem telefone? Ou algum meio pra chamar uma ambulância. – tentava controlar a gagueira.
 - Que garoto? – ela arqueou as duas sobrancelhas, ressaltando mais as rugas em seu rosto.
 - Um menino...
 - O conhece?
Tive a impressão de que se dissesse não, ela também o negaria ajuda.
 - Sim. Meu... Primo. – menti então, engolindo em seco.
Ela enfiou as mãos nos bolsos, caminhando lentamente em direção a rua traseira. A acompanhei então, o coração batendo mais acelerado. No mesmo lugar em que o deixara, o garoto resmungava muito baixo em meio a lagrimas brilhantes na face. Quando novamente ergueu a cabeça, suspirou aliviado.
 - Achei mesmo que fosse embora e deixar suas comprar aqui! – disse tentando um sorriso torto e sarcástico. Não o retribui.
A moça que estava junto de mim analisou-o por um tempo mais. Tirou do bolso um celular grande, discando alguns números e esperando dar linha. Algumas poucas palavras que informavam onde estávamos e o que havia acontecido e logo, ela voltava a colocar no bolso o telefone celular.
- Que aconteceu? – perguntou com os braços cruzados, encarando por ora a mim e por ora o garoto que estava no chão. Mordi o lábio inferior.
Talvez ele já tivesse em mente a resposta planejada. Mirou um ferro cravado no cimento da calçada, baixo o suficiente para que se alguém tivesse tropeçado, se machucasse ali. Assim como eu, ela acompanhou seu olhar e compreendeu o que o menino quis dizer. Ele ainda chorava muito baixo, quase sem fazer barulho e sem nos olhar.
Por um tempo mais fiquei a olha-lo. Não parecia ter mais de dezessete anos, os cabelos compridos colados na face molhada pelas lágrimas. Afastei-me um pouco então, prestando atenção na rua. Nenhum sinal de carro. Atravessei assim.
 - Aonde vai? – perguntou a moça arqueando as sobrancelhas, os cabelos ralos sendo levado pelo vento.
 - Hm... Sacolas. Compras. – expliquei em poucas palavras, pegando a comida do chão.
Deveria ir embora, deixa-los ali. Minha parte estava feita, ele não mais precisava da minha ajuda. Enquanto a moça olhava na direção contrária, esperando impaciente a ambulância que havia acionado a menos de quinze minutos, tive o impulso de andar rápido em direção a minha casa. Mas um olhar dele, mesmo na noite escura, me fizera novamente parar. Não o conhecia, não sabia o por que queria que eu ficasse... mas me implorava por aquilo. Mordi o lábio inferior então.
Acabei por atravessar de volta.
Estralava os dedos impaciente, sem mais querer olhar para o garoto. De hora em hora, escutava um gemido dolorido. E a cada minuto, minha curiosidade fazia par com a ansiedade. Por que da facada? Não perguntaria naquela hora.           
E quando achei que todos os relógios tivessem parado e estava prestes a enfartar depois de tanta demora, a ambulância enfim estacionara a nossa frente. Dois médicos saíram então para prestar socorro, observando o garoto ao chão. Olharam a mulher que estava ao lado.
 - A senhora seria a acompanhante? – quis saber um dos homens de branco, os cabelos grisalhos penteados para trás, a testa enrugando-se.
  - Não. A menina é a prima. – falou com certa indiferença.
Sorri falsamente, engolindo em seco. De uma maneira ou outra, sabia que sairia do meu controle. Um cochicho com o outro médico então e logo abriram a porta traseira do veiculo, tirando de lá uma espécie de maca. Não olhei enquanto colocavam o menino lá dentro... E depois de estar lá, esperaram que eu entrasse junto. Assim o fiz.   
Durante a viagem, o doutor aconselhara que ao chegar no hospital, eu imediatamente ligasse para a mãe de meu suposto primo. Os olhares entre mim, ele e o médico eram trocados freqüentemente, aflitos. Fiz a replica da história que ele havia inventado, mentindo um pouco mais detalhadamente. O homem não acreditara muito, suas expressões mostravam desconfiança.
Não demoramos a chegar, a sirene estava ligada e o automóvel passava facilmente por entre os carros, como deveria ser. Éramos eu e minhas compras andando para cima e para baixo junto a um garoto que nem conhecia. Antes de adentrarmos a recepção, ele discretamente entregou-me a carteira suja de sangue. Minha mão inevitavelmente tinha também uma mancha avermelhada, mas facilitou para que preenchesse seus dados. Algumas coisas tive de inventar, tanto na hora de escrever como quando disseram que ligariam para minha mãe vir me buscar, afinal, eu era menor.
 - Minha tia me leva para casa quando vier buscar o Eduardo – disse com um meio sorriso falso.
Era o nome dele. Eduardo Santiago Alencar, dezesseis anos, filiação Gabriela Alencar e Carlos Alencar. Eu estava sentada comendo um pacote de biscoitos, esperando por aquela família que só conhecia de nome, rezando para que eles não demorassem a chegar e assim, pudesse fugir para casa e quem sabe, antes que minha tia chegasse estar embaixo das cobertas. Balançava as pernas sem controle, o relógio caminhando lento.
Qualquer informação que fossem pedir na recepção, eu ficava atenta. Muitas vezes enganada por moças mal vestidas. Era o que havia construído em mente. Era o estado que minha mãe sairia de casa. Preocupada, descabelada. Me surpreendi quando alguém com o sobrenome Santiago encaminhava-se ao balcão em cima de um salto que nem e um milhão de anos eu conseguiria me equilibrar. A moça apontou para mim, cochichou alguma coisa a mulher que me olhou. Sua expressão indiferente fez-me congelar ainda mais.
Junto dela, havia uma garota. Eram parecidas nos traços. Respirei fundo, fechando o biscoito e me levantando. Tentei um meio sorriso não retribuído. A mulher, a qual deduzi ser a senhora Gabriela Alencar caminhou na direção do corredor frio. Voltei a sentar-me então, quando a outra se aproximou.
 - Prima? – deu uma negativa com a cabeça – O que foi que ele aprontou desta vez?
 - Só o encontrei na rua. – hesite na mentira. Mas acabei por faze-la – Ele sangrava, apenas chamei a ambulância, mas quando vi, estava aqui. Não sei o que aconteceu.
 - Não precisa explicar, isso é tarefa dele. – sentou-se a meu lado.
Continuava a balançar minhas pernas, inconsciente. Além de me aquecer, distraia-me da hora. E ao mesmo tempo, me ajudava nas palavras que seriam chaves para que eu saísse dali e nunca mais ouvisse falar no caso. Quando enfim fiquei de pé, fazendo menção em dizer qualquer coisa, a mesma mulher que vira adentrar o corredor de primeiros socorros voltava para a recepção acompanhada de Eduardo, sua perna enfaixada e uma muleta. Senti-me um pouco mais aliviada. Em termos, as coisas ficariam bem.
 - Onde está sua mãe? – foi a primeira pergunta que me fez, pergunta tão simples que me fez engolir em seco.
 - Um pouco longe daqui. Estou na casa da minha tia... Eu só queria ajudar, não tive intenção de mentir. – disparei a falar, atropelando as ultimas palavras.
 - Não é você quem deve explicações, menina. – estendeu-me a mão. – Celina, tia do Eduardo. Vou levar você para casa.
 - Oh... – peguei em sua mão, a cumprimentando igualmente – Tudo bem. Hm... Amélia! Prazer...
Depois de um olhar reprovador a Eduardo, a moça seguira para a recepção, preencher alguns papeis, quem sabe. Durante uma conversa em cochichos entre a menina que antes conversava comigo e o garoto, permaneci quieta, me contendo para não devorar o resto do pacote dos biscoitos. Fomos caminhando depois até o estacionamento, primeiro pelo elevador logo pelo galpão escuro com carros em todos os cantos.
Dentro do carro, expliquei mais ou menos a mulher como chegar em casa. Ela seguiu as instruções. E por um tempo, se fez silencio.
 - Desculpe o problema todo... – foi a voz dele que sobressaiu um tempo mais tarde. – Não tinha obrigação de fazer o que fez. Poderia ter te colocado numa confusão, enfim... Obrigado. E desculpe.
  - Tudo bem. – sorri brevemente.
  - Tenho direito a um biscoito então? – agora seu tom era brincalhão.
  - Ah, claro. – ri descontraída, passando para ele o pacote.
 - Seguinte. Se precisar de alguma coisa... Pode chamar. Tem uma caneta? – balancei a cabeça negativamente, enquanto a outra, que em questão se chamava Evillyn, passava-nos uma caneta. – Qualquer coisa, ajuda, capacho, um órgão. Não hesite – e enquanto falava, anotava um numero de telefone em meu braço.
Concordei com a cabeça, mesmo sem entender ao certo o que ele queria dizer. A primeira coisa que faria ao chegar em casa seria anotar tal número na agenda.
 - Não força, Eduardo. Quem teria coragem de ligar pra você depois de te ver sangrando? Você é má influência! – Evillyn balançou a cabeça negativamente, com um breve deboche.
 - Tanto que me ama! – riu descontraído, voltando-se a mim em seguida. – De verdade. Estaria sem uma perna se não estivesse passando por ali. Maldito ferro... Não?! – e me olhou, como se esperasse que eu confirmasse, e que acreditasse em tal coisa.
Brevemente a cena da facada me voltou a mente. Eu havia visto, e não sairia da minha cabeça facilmente. Um turbilhão se fez em volta de meus pensamentos, várias teorias sobre o por que de tal incidente. Queria perguntar-lhe, mas não o conhecia e ele não havia desmentido a história do ferro. Nesse meio tempo, fiquei o olhando igualmente. Balancei a cabeça concordando. Mas agora, ele sabia que eu vira mais do que o preciso. Apenas respirou fundo, olhando para o vidro da janela.
Chegamos em casa então. As luzes, por minha sorte, estavam apagadas. Apanhei minhas compras e agradeci a carona. Fora muito bem vinda, já que minutos depois minha tia chegara em casa. Expliquei-lhe a história, por cima, sem os detalhes da facada e do tempo que ficara no hospital. Nem todas as besteiras nas sacolas me manteriam acordada, me joguei no colchão mais próximo e dormi, sem antes pensar no que me havia acontecido. Mal esperava para contar a alguém! Mal esperava todas as coisas que ainda estavam por vir.