Zoe Belline


Parte I - Zoe Belline.

A lua mal iluminava o céu naquela noite, fria como bem me lembro, onde a neblina já cobria boa parte da pequena cidade afastada. Os outros já haviam dormido pelo quão tarde que a noite se fazia, os olhos pregados e os pensamentos navegando tão seguramente depois de refugiados atrás de alhos, cruzes e água benta com terços que boiavam dentro de seus baldes, em sinal de proteção. Tão tolos. Bastaria um estalar de dedos, e a cidade iria abaixo. Por mais que dissessem que a paz novamente reinara, sabíamos que apenas o medo os fazia reconhecer seus verdadeiros líderes, abaixar suas cabeças perante a nova hierarquia e sorrirem submissos como eram.
As velas se mantinham acesas em cima do castiçal no centro da mesa, a cera escorrendo por sua prata antiga, herança da família Belarco. Uma taça manchada de vermelha e vazia mantinha-se deitada na madeira lisa, derramando as ultimas gotas da vida de uma meretriz qualquer. Não faziam falta, não iriam interferir na tão sonhada “vida” entre mortais e imortais. Bobagem em minha opinião, mas quando se tratava dela, Memphus Belarco, meu Criador e Pai não dedicava se quer um minuto de seu precioso tempo.
E em tocar no nome do demônio.
A porta se abriu então, dando passagem a corrente de ar frio do lado de fora, a qual não diferenciou a temperatura de meu corpo. Os cabelos penteados para trás estavam tão arrumados quando na hora em que saíra, os negros que destacavam o branco exagerado de sua pele, o qual eu herdara sem nenhum parentesco comum, como dizem os mortais. O casaco preto cobria-lhe o peito, as linhas douradas desenhando a costura de sua veste, a questão que fazia de mostrar aos outros que a diferença não estava apenas entre raças, eis ai um motivo maior para o governo vampirico da época. Pude observar a silhueta dela a seu lado, os cabelos claros esvoaçando com o vento e um xale grosso lhe cobrindo as costas, quase como um cobertor.
- Noite. – cumprimentou-me secamente, abraçando-a pelas costas e a colocando para dentro da casa então, fechando a porta a suas costas.
Fixei os olhos naquela figura. Os cabelos louros pareciam um tanto encardidos assim como as vestes azul turquesa desbotadas, a saia do vestido chegando-lhe abaixo dos joelhos. As bochechas eram naturalmente avermelhadas, não pela noite fria que se fazia do lado de fora, uma vivacidade que nunca teríamos. E os olhos. Não pude ver seus olhos por estarem baixos naquela noite, provavelmente procurando um refugio para sua insegurança.
- Onde está Djerta? – quis saber Dom Memphus, como costumava ser chamado.
- Indo! – escutei a voz de minha irmã de sangue ao longe ultrapassar as paredes da casa.
Ele apenas assentiu com a cabeça, a acolhendo mais um pouco em seus braços. Pude observar o quanto a criança tremia, não se atrevia a olhar para qualquer lado, os dedos das mãos mexendo-se em baixo do xale velho, o qual pude perceber alguns rasgos mais de perto.
Os passos de Djerta foram silenciosos no corredor, logo puxava uma cadeira e sentava-se a meu lado na mesa, levantando o copo que deixara caído há um tempo. Disfarçava a palidez com alguns artifícios modernos, avermelhando as maças do rosto e pintando os lábios de um vermelho escuro, os olhos claros delineados com um preto forte. Não era muito mais velha do que eu apesar da aparência, fora transformada décadas depois pelo medo de ficar sozinha. Era o que lhe reservara seu egoísmo, mas driblar a morte não era tarefa tão difícil a quem já está a seu lado e sabe seus truques, suas artimanhas.
Dom Memphus pigarreou então, como se todas as atenções já não estivessem voltadas a ele. Olhou para a criança a seu lado, sorrindo cordialmente então e erguendo seu rosto, o olhar um tanto desnorteado percebi eu.
- Então foi ela a escolhida? – Djerta arqueou a sobrancelha, sem a sutileza de esconder a incredulidade, a qual não me surpreendia. – Ela parece ter doze anos, Memphus.
- Hipérboles. Dezenove para ser mais exato. – disse-lhe ele, mesmo sabendo não precisar dar-lhes explicações. – Não são faces, são atos. Ele seria uma boa mãe.
Não pude conter o riso por entre os dentes, um tanto sarcástico e abusado de minha parte, os olhos voltando-se a mim. De certo, Djerta concordava com meus pensamentos, mesmo sem poder persuadi-los para si. Os olhos de meu Criador por um tempo mais se fixaram no meu, que não mudaram seu tom, digamos... Insolente.
- Problemas, Dorian? – quis saber então, ameaçando-me sem palavras.
- Nenhum. Porém não achei que traria uma ninfa em desenvolvimento para casa. Como poderia nos ajudar? – estava realmente curioso para conhecer os dotes de uma garota apenas dois anos mais velha do que eu aparentava ser.
- Lhes ajudar? Ora essa! A escolhi para minha mulher, querem uma escrava do lar, arranjem suas próprias. – sorriu-me porcamente de lado, colocando-a em sua frente então.
Os olhos ainda pareciam perdidos, e quando faziam menção de encontrarem-se aos meus ou de Djerta, desviavam-se para qualquer móvel da Sala de jantar. O coração batia forte demais, bombeando com mais velocidade o sangue pelo corpo, o qual não podíamos deixar de senti-lo. Mas éramos tão controlados... Anos de treinamentos e torturas ajuízam até mesmo um marginal débil-mental.
- Zoe... Certamente Dorian e Djerta tiveram o prazer em conhece-la. Agora, vou mostrar-lhe seu quarto. – dirigiu-se a ela então, a encaminhando para os corredores ao lado.
Olhei brevemente minha irmã que balançava a cabeça negativamente.
 Zoe Bellini era a idéia perfeita a qual Dom Memphus guardava nas mangas. Um sanguessuga casar-se com uma mortal, excelente estratégia. Teria de apenas cumprir o seu papel de esposa exemplar, sair em dias de sol para as compras, cuidar do marido e filhos. Qual problema havia nisso? Tudo não passava de um jogo.
O Rei Magnus precisava apenas de um aliado em seu reinado sujo, o qual mostraria aos outros o quão linda era a paz entre seres de espécies diferentes. A idéia enojava-me a ponto de não querer me colocar em negócios familiares. Porém estava tudo resolvido. Dom Memphus e sua ninfeta agora dividiam uma casa, um quarto, e logo uma (ironicamente) vida.